segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Sobre asfaltos e gente

O dia tinha amanhecido nublado. Ainda chovia quando ela acordou, como quem não queria que a cama a soltasse. Mas precisou sair, tomar banho e estudar. Ir para a faculdade, traçar seu futuro. Bem que aquele noite regada a amigos, músicas e vinhos poderia continuar até o dia seguinte. Mas o despertador do celular foi mais rápido que aquele pensamento.

Enfim, ela se levantou. Ainda sonolenta, se despediu dos amigos que a hospedaram. ''Foi bom te ver! Vamos marcar mais vezes!''. Velho bordão.

Desceu as escadas do prédio sobre pilotis, tão característico de Brasília. Atravessou a rua. E outra. E outra. Seu destino era a W3, onde finalmente chegaria em casa para arrumar as coisas para a aula.

Eram sete horas da manhã. Cruzou então a movimentada avenida, sempre tão cheia de pessoas correndo, mesmo que tão cedo. Parou no canteiro do meio, esperando que o fluxo diminuísse.

''Caralho, que sono!'', pensou. Nenhum carro aparentemente à vista. Os passos leves a levaram até quase o fim da rua. É, até quase. Um carro em alta velocidade veio em sua direção. Acho que ela nem teve tempo de pensar em nada no instante. Seu corpo se jogou para o lado contrário, tentando se proteger. Nem sei se ela conseguiu pensar em alguma coisa, mas, naquele momento, não era ela que tomava as decisões ali. Era seu corpo dizendo ''você não pode morrer''. O carro passou como um furacão, sem voltar atrás do caminho traçado.

Seu rosto lindo foi arranhado violentamente pelo asfalto. Já havia chegado perto da parada, onde pegaria qualquer ônibus que a levasse para a casa, de preferência em segurança.

7h30 da manhã. W3 Sul. Cheio de pessoas correndo para não se atrasar para o trabalho, para a escola. Talvez o causador daquela situação estivesse atrasado também.

A parada de ônibus estava cheia. 5, 10, 15 pessoas olhando nos relógios, ansiosas para pegar suas conduções. Nenhuma delas parou para ajudar. Nenhuma sequer hesitou! Uma menina de 20 anos caída no chão, com sangue no rosto. O rosto branco e lindo, mas ninguém estendeu se quer a mão.

Deveriam estar todos muito atrasados.

Os ônibus ignoravam seu sinal de alerta. ''O que uma garota ensanguentada pode estar querendo aqui?'', devem ter pensado. Alguns minutos depois, sozinha – completamente sozinha, ela conseguiu, finalmente, um transporte que a deixasse em seu destino final. Então ela desceu em seu ponto, em frente a sua casa.

''E se ela tivesse caído para o lado errado?'' ''E se ela estivesse atravessado a rua um milésimo de segundo antes?'' ''E se o carro tivesse a atingido?'' ''E se alguém tivesse a ajudado?'', pensou o amigo em tantas hipóteses absurdas...

Enquanto todos entretidos em seus pensamentos mediocremente fúteis. ''Será que vou perder a chamada do primeiro horário?'' ''Tenho tantas contas a pagar hoje...''.

Vocês não são gente.


5 comentários:

Lucas Cajueiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Eros Bittencourt disse...

Tenso. Muito tenso.

Lucas Cajueiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hayet disse...

Absurdo, de fato, o que acontetceu. Ninguém poderia expressar melhor, talvez nem ela mesma.
Parabéns gatona, manda uma força pra ela por mim.
Beijo!

Edila Durval disse...

Muito bom, Filha. Excelente o seu texto e muito triste o contexto. Mas suas palavras, tao bem colocadas, nos ajudara certamente a refletir sobre a nossa submissao ao relogio. Lembra do Mario Quintana em "Os relogios"? Ele disse que nossos relogios parecem mais uns necrologios... Reflitamos.
Mas, PARABENS pela mensagem. Mae